cura

disponho as palavras de modo diferente e reinvento a minha já inerte maneira de escrever. vejo-me de fora sem a dependência do meu corpo às minhas doenças: como se não me fosse; sem as feridas em grito. critico-me sem mágoa. escrevo com a caneta sem a minha tinta em constante indecisão.

cura

nesta visão de fora que me constrói, crio finalmente uma ideia real do que transpareço. mas (re)reflectir-me na retina recria também uma nova alteração no que pareço. o processo é anulado, falha-se a tentativa de ter uma visão fugaz e isenta deste eu que ando a tentar descobrir (e talvez gostar): o meu corpo insiste em ser-me, em aperceber-se de que eu o observo. e aí, baixo a cabeça e abstraio-me, até voltar a reconhecer a minha voz.
 
 
maharet

deitados no chão,

onde a frescura se pressente maior. a cidade trancada lá fora. fustigada pelo sol. a espaços, dilui-se o fragor do ruído dos aviões nas bandas de luz que escoam das persianas.

deixo que os olhos se fechem.

expiramos uma solidão antiga que logo se condensa, que logo decai como uma nuvem triste sobre os nossos braços despidos. os corpos despidos.

no enlevo do silêncio esquecemos decénios. imóveis. à espera que o tempo corra sem nós. que escapemos por fim à órbita da terra. que tudo o mais seja o vazio.

diáfanos. dois corpos como vasos comunicantes.

a fazer:

.cortar a electricidade
.espalhar as unhas no lavatório
.estancar (de uma vez por todas) a baba que me pinga na boca
.lavar a lixívia com mãos
.coser os pêlos nos poros
.mais plástico para arder
.álcool etílico no congelador, fita adesiva nos pulsos
.lamber as migalhas do chão
.masturbar-me masturbar-me masturbar-me
.embotar a faca grande
.cuspir as cápsulas de debaixo da língua

ordem indiferente. assim que me dispam o colete de forças.
assim.

lapsos iv

vii

nota mental:
não tornar a conduzir enquanto padecer de insónias.
 
 
vi

trituram-se-me os dedos nos dentes do medo
até que já nada doa.
 
 
v

solidão.
mal por mal preferia habitar um planeta por poluir.
 
 
iv

perscruto os espelhos para me certificar de que
ainda sou.
 
 
iii

dou por mim a imaginar quantos
quilómetros nos separarão.
 
 
ii

esquecer tudo. as leis que regem o mundo.
olhar as palavras e não as saber ler.
 
 
i

ouvir-me só a mim…
silêncio.
 
 
+

observo pacientemente o nascer do sol.

aguardo um novo dia.
como companhia, um amontoado de pedras. dispostas ao acaso.

observo pacientemente o nascer do sol.

aguardo.

nepenthés

escrever é poder.

00b 0416-0915

 
 
infinito. eterno.

00a 0317-0416

fagulhas lambem-me

os contornos ósseos – bruscas quando
desfiro o ímpeto dum punho cerrado nesses den
tes
 
 
delicio-me perante esse sorriso já des
                             figu
rado enquanto
 
 
 
…perco…
 
 
 
…a…
 
 
 
…conta das vezes que zombou de mim

só morrendo aos poucos

descubro que ainda estou vivo.

só morrendo aos poucos

tudo.

tudo. a companhia da sombra que caminha a meu lado. tudo. o silêncio que me dá as boas vindas a casa. tudo. a quietude que me embala até eu adormecer. tudo. a de-

pressão que me acorda com um beijo de bom-dia.
tudo no sítio certo.

a eternidade.

 

multiplicada pelo desalento  de
cada instante é o tempo que as ondas  
electromagnéticas demoram a percorrer o mar  de
nada que nos    
     
  separa .

 
 
+