as retinas riscadas pela

luz das suas mãos a
flutuarem sobre os meus
braços
.

(há sempre uma vez

que é a última vez.)
 
 
 
parte
comigo.

caminho de volta a casa, devagar.

caminho devagar pois nada me espera.

nada me espera a não ser a minha ausência.

esta noite

queria pegar neste momento como se pega numa fotografia e agrafá-lo aqui.

esta noite

o vento a escapar-se-me por entre os dedos.

sinto-o como se fosse a sua ausência.

a sua ausência tão presente.

sinto-a como se fosse a sua mão.

estima

 

a minha violência é proporcional
ao quão pejados de ódio estão os meus pulmões.
 
 
detesto-te.
não podia ser mais simples.
 
 
achas mesmo que me consegues roubar?
 
eu não tenho
nada. eu não. tenho
nada. nada.
 
como me podes roubar?
 
 
vem. dá-me um murro
                              pontapés. amassa-me os ossos
 
parte-me a cara o nariz os olhos
as trombas todas desfeitas em sangue
 
 
aarghj!
 
 
os dentes todos  e s p a l h a d o s  pelo chão.
como se riem de ti.
 
 
 
 
estimo bem que te fodas.

 
 
(2000)

ciclo infinito

é ao cheiro seco da desesperança que as pontas dos
dedos sabem após esgravatarem a gangrena de mais um dia.

ódio

ódio
 
 
+

conduzo há tanto que já me não lembro de onde partimos.

ávidos de asfalto, os faróis rasgam a escuridão. iluminam o desfile matemático do traço descontínuo. só o ruído incessante do motor me prende ainda à realidade.

a meu lado ela dorme, a cabeça pendendo ligeiramente na minha direcção. os sapatos tombados diante dos pés tão finos. descaída pelo braço, a alça do vestido. negro como as pálpebras esborratadas pelo rimmel.

uma tranquilidade aparente fá-la esquecer a angústia com que arrancava a roupa às gavetas e a amarrotava na mala. os dedos trémulos. enquanto continha o choro. antes que fôssemos ouvidos.

sinto ainda o ímpeto com que me tomou a mão e a estreitou com força.

“vamos?…”

a voz embargada, como que à espera da certeza de termos já ultrapassado o ponto sem retorno.

toco-lhe os antebraços abandonados no colo. levemente. vamos. prometo-lhe.

conduzo há tanto que já me não lembro de qual o destino.

“se fôssemos à praia?”

não gosto de praia. “vamos só à tardinha… ver o pôr do sol.”

já a frescura mansa do mar percorria o areal quando chegámos. sem trocarmos uma palavra dirigimo-nos para a zona mais recatada da praia. a orla das dunas a resguardar-nos as costas do vento.

dobras os joelhos, cinges as pernas nos braços, enterras os pés na areia. deleitada.

por minutos observamos o mar. em silêncio. dos grupos de pessoas dispersos na distância apenas nos chega um ou outro riso indistinto intercalado pelo rebentar periódico das ondas.

olhas-me demoradamente. de súbito levanta-se um vento incómodo que insiste em arremessar areia pelo ar. escondes a cara nos meus braços. “contigo aqui o sol bem podia nunca se pôr”, ouço-te dizer.

deixamo-nos ficar. para lá das dunas a vila anoitece. acendem-se os primeiros candeeiros públicos. o jantar pode esperar.

podíamos correr praia fora. mergulhar nas ondas cada vez mais sombrias. deixar os corpos a escorrerem sal desabarem na calidez da areia. numa vertigem. esticando os incontáveis fins de tarde de julho que nunca tivemos.

mas não. deixamo-nos ficar. o sol misturado no vento como ouro gasoso a sulcar o teu cabelo. revolto. o rebentar das ondas. compassado. sabes?

contigo aqui o sol bem podia nem sequer existir.