adoro a tua voz.

ouço cada palavra tua como se fosse a última

com a escuridão desaba o sono

lentamente
instala-se o frio. não me gela os ossos,
estremeço apenas.

só.
podia não estar
mas prefiro a companhia da
        única pessoa que algum dia
        me compreendeu.

sublime.
reconhecer a melancolia ao espelho.
acolher-me de volta
e por breves instantes

sorrir

cheguei.

havia luz a desvanecer-se no céu. estava frio como eu gosto. não reparei nas pessoas a olharem para mim. talvez hoje ninguém o tenha feito.

indigente

manhã. um homem defecava no separador central da avenida enquanto uma multidão de gente saía dos autocarros alheada na pressa de chegar algures.

como me nauseia a putrefacção humana. a da multidão de gente. eu incluído, claro.

pensei em ti enquanto jantava.

imaginei que hoje saisses. eu não. porque não tenho com quem sair e mesmo que tivesse não havia de querer.

coisas sem importância

eu quero
aconchegar-me no cobertor de estrelas
duma galáxia que fique tão longe
que nem sequer se saiba que existe.
e não quero pensar em nada
a não ser naquilo que amo.
esquecer as coisas más.
não me importo que nunca
tenhamos dado as mãos nem
me importo que nunca
me tenhas abraçado e em vez disso
te tenhas esquivado a um abraço meu.
porque no sítio para onde eu quero ir pode
não haver alegria mas também
não há nem dor nem saudade.
 
 
(1998)

não tenho em que me fixar para conseguir enfim adormecer.

já nem a solidão é coisa certa*. não tenho em que me fixar para conseguir enfim adormecer.

* por ora.

água

quando a noite é ainda mais escura por as estrelas se encontrarem tapadas por uma lama cinzenta que escoa água

aproveito para sentir a chuva esbarrar-se contra o meu tronco, nu.

sabendo que se tivesse a consciência da proveniência, dos recantos por onde cada átomo de cada molécula em cada gota de chuva passou

deixaria de ser humano. seria a transcendência do espírito corporizada em mim próprio. nos braços. nas pontas dos dedos.

deixaria de ambicionar a felicidade. porque felicidade é agitação, tal como a infelicidade o é.

seria paz.

o silêncio das partículas em repouso absoluto
 
 
(2000)

desassossego

onde está o rapazinho tímido de quem faziam troça na escola?

não me reconheço. olho-me ao espelho e quem me olha de volta não responde às minhas ordens.

passou a noite com as entranhas a fervilharem de fúria. eu só queria dormir.

um pedido de desculpas

com cada pixel de cada letra de cada palavra de cada frase vou
estilhaçando a tua sedutora fantasia

desculpa, sou
o antónimo antídoto da perfeição

(escrevi-te entre dois gráficos de barras e fodi metade da folha de cálculo)