o nada.

sou perfeccionista e apesar disso tudo o que me sai das mãos é torto. até estas palavras se entaramelam umas nas outras.

mas fechando os olhos e esquecendo-me da linguagem, de mim próprio e até do universo vejo a perfeição com clarividência.
 
 
nada tem a ver com  i s t o .

o homem, caído no chão.

os braços inertes ao longo do tórax. do crânio fendido brota um rio vermelho que alaga o passeio até escorrer para a sarjeta. a mulher, de joelhos. desarranjada. tenta estancar o sangue com as mãos. chora. os gestos são aflitivos. em vão.

o silêncio da hora de ponta deixa que o nome clamado seja ouvido.

lapsos i (sonhos singulares)

vii

uma abelha arrastava-se entre as pedras da calçada.
podia tê-la esmagado.
 
 
vi

só estaria bem em lado nenhum.
contigo.
 
 
v

perdido algures entre as luzes da cidade e
o ruído de estática na minha cabeça.
 
 
iv

tu e eu. abraçados. imóveis. em silêncio.
indiferentes à multidão de gente que passa por nós.
 
 
iii

se o que sinto fosse fome
enfardava até rebentar.
 
 
ii

não completas as minhas frases.
és cada palavra.
 
 
i

nas minhas mãos tudo se parte.
tudo são estilhaços.

observo-a enquanto dorme.

adivinho-lhe serenidade na disposição das mãos. graciosidade no respirar. do fundo do tempo ainda me comove a inexplicabilidade de a presenciar.

enquanto espero

atraco os olhos nas copas das árvores, como se através delas pudesse
sorver a lama de cinzas do céu e elevar-me assim acima da poluição.

enquanto espero

ruído branco como chuva a despenhar-se em telhados de zinco.
 
 
 
 
 
paz.
 
 
 

caminho mas percebo-me imóvel,

como que seja o mundo a caminhar por mim. inevitavelmente acabo por perder os olhos na angústia do inatingível.

convenço-me a acreditar que num universo paralelo qualquer serei o primeiro.
 
 
 
num universo paralelo sou o primeiro.

vazio

vazio

como o antro da cela trancada
da minha mente
desprovido de qualquer significado

tão vazio

despido e quase enregelado
demente
como amor a esvair-se em nada
 
 
(1998)

regresso finalmente a casa.

vejo-te junto à praia, absorta,
olhando o horizonte distante.
corro para ti, esperançado.

digo-te por fim:
– sou o último homem na terra.

nem te dignas a olhar-me.
diriges-te simplesmente a casa
e engoles de um trago
o cálice de cicuta
que havias preparado.
 
 
pedro sousa

encho mais um depósito de gasolina.

conduzo.

as luzes dos faróis ávidas por engolirem a estrada.
nos retrovisores vejo-me a lavar-lhe os pés. ela perde os olhos no infinito.

nada como o gelo duma lâmina para raspar a pele carne da minha identidade.

encho mais um copo de gasolina.
bebo.

esta noite
eu
vou ser
o sol
.

vi-a numa carruagem do metro.

desolada. quando regressei à superfície o dia tinha acabado de findar. a noite como dois braços abertos.