conduzo há tanto que já me não lembro de onde partimos.

ávidos de asfalto, os faróis rasgam a escuridão. iluminam o desfile matemático do traço descontínuo. só o ruído incessante do motor me prende ainda à realidade.

a meu lado ela dorme, a cabeça pendendo ligeiramente na minha direcção. os sapatos tombados diante dos pés tão finos. descaída pelo braço, a alça do vestido. negro como as pálpebras esborratadas pelo rimmel.

uma tranquilidade aparente fá-la esquecer a angústia com que arrancava a roupa às gavetas e a amarrotava na mala. os dedos trémulos. enquanto continha o choro. antes que fôssemos ouvidos.

sinto ainda o ímpeto com que me tomou a mão e a estreitou com força.

“vamos?…”

a voz embargada, como que à espera da certeza de termos já ultrapassado o ponto sem retorno.

toco-lhe os antebraços abandonados no colo. levemente. vamos. prometo-lhe.

conduzo há tanto que já me não lembro de qual o destino.

someday

someday

domus justitiæ

domus justitiæ

domus justitiæ

domus justitiæ

“se fôssemos à praia?”

não gosto de praia. “vamos só à tardinha… ver o pôr do sol.”

já a frescura mansa do mar percorria o areal quando chegámos. sem trocarmos uma palavra dirigimo-nos para a zona mais recatada da praia. a orla das dunas a resguardar-nos as costas do vento.

dobras os joelhos, cinges as pernas nos braços, enterras os pés na areia. deleitada.

por minutos observamos o mar. em silêncio. dos grupos de pessoas dispersos na distância apenas nos chega um ou outro riso indistinto intercalado pelo rebentar periódico das ondas.

olhas-me demoradamente. de súbito levanta-se um vento incómodo que insiste em arremessar areia pelo ar. escondes a cara nos meus braços. “contigo aqui o sol bem podia nunca se pôr”, ouço-te dizer.

deixamo-nos ficar. para lá das dunas a vila anoitece. acendem-se os primeiros candeeiros públicos. o jantar pode esperar.

podíamos correr praia fora. mergulhar nas ondas cada vez mais sombrias. deixar os corpos a escorrerem sal desabarem na calidez da areia. numa vertigem. esticando os incontáveis fins de tarde de julho que nunca tivemos.

mas não. deixamo-nos ficar. o sol misturado no vento como ouro gasoso a sulcar o teu cabelo. revolto. o rebentar das ondas. compassado. sabes?

contigo aqui o sol bem podia nem sequer existir.

cura

disponho as palavras de modo diferente e reinvento a minha já inerte maneira de escrever. vejo-me de fora sem a dependência do meu corpo às minhas doenças: como se não me fosse; sem as feridas em grito. critico-me sem mágoa. escrevo com a caneta sem a minha tinta em constante indecisão.

cura

nesta visão de fora que me constrói, crio finalmente uma ideia real do que transpareço. mas (re)reflectir-me na retina recria também uma nova alteração no que pareço. o processo é anulado, falha-se a tentativa de ter uma visão fugaz e isenta deste eu que ando a tentar descobrir (e talvez gostar): o meu corpo insiste em ser-me, em aperceber-se de que eu o observo. e aí, baixo a cabeça e abstraio-me, até voltar a reconhecer a minha voz.
 
 
maharet

monastery / caravel

monastery / caravel

monastery / caravel

monastery / caravel

deitados no chão,

onde a frescura se pressente maior. a cidade trancada lá fora. fustigada pelo sol. a espaços, dilui-se o fragor do ruído dos aviões nas bandas de luz que escoam das persianas.

deixo que os olhos se fechem.

expiramos uma solidão antiga que logo se condensa, que logo decai como uma nuvem triste sobre os nossos braços despidos. os corpos despidos.

no enlevo do silêncio esquecemos decénios. imóveis. à espera que o tempo corra sem nós. que escapemos por fim à órbita da terra. que tudo o mais seja o vazio.

diáfanos. dois corpos como vasos comunicantes.

ever

ever

kräne

“you’ve got two things against you: one is desire the second is memory”

kräne

i fill my head with noise leaving no space for thoughts of her

somewhere

somewhere

there’s a dream factory after the woods